A firme decisão de cantar eternamente a grandeza de Deus não pode esmorecer diante da tribulação. A vida cristã não se difere de outros estilos de vida porque quem a vive não se depara com o sofrimento humano, mas pelo fato de que a certeza do amor do Senhor nos incita a olhar o mundo de modo profundamente diferente, o que nos leva a superar as nossas dificuldades e a inferir até mesmo um valor ao sofrimento humano.
O Salmista, no Sl 88(89), nos leva a pensar que algum acontecimento trágico “perturba” o povo de Israel, não obstante a isso, em meio a tribulação, apesar dela, deparamo-nos com um canto à misericórdia do Senhor. O problema perturbador pode não estar simplesmente no sofrimento humano em si, mas nas possíveis conclusões que a pergunta sobre a sua origem pode nos levar; tais conclusões podem conduzir à afirmação de que o Senhor não é leal. Assim, o canto à lealdade de Adonai nada mais é que a confissão de fé nas suas promessas.
É fácil cantar a lealdade de Deus quando tudo vai bem; o difícil é cantá-la quando os fatos parecem desmenti-la[1]. O que sustenta este canto é a recordação dos grandes feitos maravilhosos que o Senhor operou no passado – eles nos levam a confirmar a sua grandeza e a dizer que a sua lealdade é tão firme como os céus (cf. Sl 88, 3) – e a conscientização de que o fato de não compreendermos o sofrimento não significa que esteja em Deus a sua origem. Uma desgraça pode até fazer estremecer a aliança estabelecida por Adonai, mas o rompimento da mesma não se fundamenta em pequeninos abalos emocionais; isto nos leva a crer que suas raízes podem estar no esquecimento de que o amor do Senhor é garantido para sempre (cf. Sl 88, 3).
Diante disso, deparamo-nos com a necessidade de se manter viva a memória do amor misericordioso de Deus, pois o canto à sua lealdade depende da recordação da experiência que fizemos do mesmo. Em certo sentido, a memória é a condição de possibilidade do descobrimento e conservação da identidade e o modo de se deparar com o passado, conservando-o. Porém, a experiência nos mostra que recordamos coisas que preferíamos esquecer e esquecemos outras que nos interessa recordar; a memória é seletiva e sua capacidade de retenção é limitada. Esta realidade deve nos fazer motivar a nossa memória a salvaguardar aquilo que sustenta a certeza do amor de Deus por nós, pois, somente fundamentados nela poderemos cantar eternamente o seu amor.
[1] Cf. SCHÖKEL, Luís Alonso e CARNITI, Cecília. Salmos II: salmos 73-150. São Paulo: Paulus, 1998, p. 1121-1122.
25/04/2016 - Atualizado em 25/04/2016 13:17